Fazia-me festas na cabeça. Cantava-me canções de embalar. E guardo para sempre a memória daquelas mãos envelhecidas pela vida. A voz rouca e a melodia que entoava...
Senhora do Almortão ... minha tão linda raiana ...
Virai costas a Castela... não queiras ser castelhana...
O sabor de umas papas de bolacha. O toque suave que me penteava o cabelo. A sua roupa e o mesmo avental de sempre. As rugas profundas que marcavam uma vida. O olhar claro temperado de água. E aninhava-me assim naquele colo. E tudo ficava calmo. Não havia dúvidas, não havia medo. Crescer estava tão longe e ser pequena enchia o coração. Uma história entre duas voltas de renda em linha branca onde me ensinava a desenhar. O sorriso alegre que brindava à vida. O perfume que reconhecia todos os dias. E ali aconchegada o Mundo era perfeito enquanto ao longe ouvia...
Olha a laranjinha , que caiu, caiu...
No regato de água, nunca mais se viu...
Nunca mais se viu, nem se torna a ver...
Cravos à janela, rosas a nascer!
Quem me dera aconchegar-me agora no colo da minha bisavó. Acreditar outra vez, assim, na vida e ter a certeza de tudo.
Leio-te novamente como não fazia há cinco anos. Piadas, mentiras, inocência infantil. Ao ler-te relembro-me das pequenas coisas que esqueci. Da miúda de 17 anos que fui. Das tardes no café a jogar Uno. Do cheiro daquela Primavera. Da roupa que vestia. Da alegria de cada toque de telemóvel e dos poemas por SMS. De uma noite quente ao telefone, que já não me lembrava. Do Portugal-América acompanhado por coca-cola no café ao pé do Liceu.
De um beijo. Num banco de jardim. Do sol daquelas tardes de Verão e na chuva do Outono que lentamente começou a chegar. Do teu sorriso quando subias as escadas e do meu aniversário. Das mãos dadas. De uma noite de Abril.
Da nossa inocência e da nossa sede de amar. De um beijo. De muitos beijos. De todos eles. Lembro-me de te ter chegado a amar.